Orfeu e Eurídice: O Dionisíaco Sacrifício pela Vida

Por Renato Bandola

Psicólogo e Psicoterapeuta

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O mito de Orfeu relata a trajetória do mais famoso poeta e músico sendo considerado o arquétipo do artista e um dos mitos mais discutidos onde o criador é visto de uma forma dúbia, mas talvez mais real por não se esgotar em apenas uma leitura. Apolo o deus luminoso lhe deu a lira e as musas lhe ensinaram a usá-la, assim como afirma Platão em Timeu quando diz do som das esferas produzido pelas musas. A música de Orfeu era tão encantada que acalmava os animais selvagens e fazia as árvores e pedras se moverem.

Com sua música, na expedição dos Argonautas, Orfeu ajudou a tripulação a superar inúmeras dificuldades e na volta da viagem o herói se casa com Eurídice. Um dia Eurídice encontrou Aristeu, que tentou violenta-la e na fuga a ninfa pisou em uma serpente alcançando a morte com sua picada. Assim Orfeu desce ao Tártaro na esperança de trazê-la de volta das garras do deus do submundo, Hades.

Em sua descida Orfeu encantou não somente o barqueiro Caronte, mas também o cão Cérbero e os Três Juízes da Morte com sua música melancólica, mas suspendeu temporariamente a tortura dos condenados; e acalmou tanto o coração selvagem de Hades, que convenceu o deus a trazer de volta sua amada.

Hades propôs apenas uma condição: que Orfeu não devesse olhar para trás até que ela estivesse de volta em segurança a luz do Sol. Eurídice seguiu Orfeu pela passagem escura, guiada pelo som de sua lira; antes que ela pudesse alcançar a luz, desconfiado Orfeu voltou-se para ver se ela ainda estava atrás dele – e assim a perdeu para sempre.

Quando os mistérios do deus Dionísio chegaram a Trácia, Orfeu deixou de honrá-lo pregando outros mistérios sagrados e condenando o assassínio sacrificial. Irritado, o deus mandou as Bacantes atrás dele em Deio, na Macedônia. Possuídas, as mulheres (bacantes*) esposas dos maridos fiéis ao culto de Orfeu, armaram uma cilada e mataram todos os maridos tal qual Orfeu que desdenhava do amor feminino desmembrando a todos.

As musas enterraram Orfeu ao pé do monte Olímpo e sua cabeça fora depositada em uma caverna em Antíssa consagrada a Dionísio, onde fazia profecias dia e noite incomodando até os Oráculos de Delfos com suas previsões.

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Não consegue-se pensar Orfeu sem falar no encantamento produzido pela estética que o mesmo produziu. O mesmo encantamento utilizado pelas sereias que conduziam os marinheiros a morte certa. Sua jornada revela os mistérios que diz da capacidade humana de deixar-se conduzir pelo delírio da possessão amorosa sem perder-se de si, porém, Orfeu utiliza isto a partir de seu instrumento, a lira, que de algum modo funciona como uma varinha de condão, produz magia ou efeito psíquico capaz de influenciar inconscientemente todos aqueles sujeitos a sua música.

A ideia de possuir o domínio sobre as artimanhas da anima (uma dimensão profunda do inconsciente do outro) a ponto de controlar o mesmo como lhe apraz a princípio leva o herói a sentir-se onipotente em sua jornada ao reino inferior, mas nada sabe a respeito da serpente, pois ainda não efetuou sua própria iniciação. A picada da serpente em vários mitos possui o simbolismo de iniciação ou novo nascimento, Eva picada pela Serpente conheceu o Bem e o Mal, havendo após isso sofrido a queda do paraíso ou condição idealizada da própria existência.

Muitos são os paralelos envolvendo a serpente enquanto deus regenerador cuja função é a de fecundar a terra, revelando o animus da mulher ou a força do Logos divino. No México por exemplo segundo Jacques Soustelle citado por Gheerbrant & Chevalier (2006), “…o sacrifício do deus Quetzalcoatl é uma retomada do esquema clássico de iniciação, feita de uma morte seguindo-se ao renascimento ele se transforma no sol e morre no ocidente para renascer no oriente…”.

Ou também no “… culto das pítons sagradas conservadas no templo de Abomé, a quem são dedicadas jovens que noivam, ritualisticamente, com os deuses, na época das sementeiras”. Assim também no mito de Eros e Psique, o deus torna-se uma grande serpente visando raptar a bela mulher desposando-a.

Orfeu inicia assim a sua jornada, mesmo tendo se casado com Eurídice sem que esta tenha se iniciado nos mistérios da alma. Entre seus obstáculos Caronte, Cérbero e os três juízes da morte se mostram como etapas necessárias a serem vencidas, o primeiro representa a descida ou o preço que se deve pagar ao barqueiro para que consigamos descer a nossa interioridade, o investimento que efetuamos ao processo de autodescoberta. Cérbero é a condensação ou o amálgama de todas as questões morais empurradas para “debaixo do tapete” ou a sua própria sombra. E finalmente os Juízes que lhe dão aval ou não o julgam pois a iniciação não é dele mas de sua alma.

Finalmente o grande senhor do submundo o desafia a confiar que sua mulher estará com ele até a luz da superfície somente se não olhar para trás, porém a grande dificuldade do sedutor é justamente a confiança, pois é exatamente por não conseguir ser fiel aos ideais convencionais ou justamente por não conseguir lidar com Hades diferentemente do que ele é, Orfeu é “mal” sucedido em sua tarefa, pois desconfia do outro, olha o invisível.

Aqui se insere o paradoxo do visível e invisível. Será que Orfeu por querer vislumbrar o invisível, projeta o seu próprio inconsciente onde acredita-se estar no inconsciente do outro? A perda de Eurídice é a projeção das suas próprias questões inconscientes, Hades joga com o herói e o pega onde ele menos espera, no seu próprio submundo (inconsciente). A ingenuidade de Orfeu é acreditar vencer os demônios do outro, quando na verdade está apenas adentrando no seu próprio inferno em não confrontar os opostos ou olhando para sua incapacidade em deixar que sua alma trilhe a própria jornada. Aqui começa o real processo de iniciação do herói fundador do orfismo e dos mistérios de Elêusis na antiga Grécia onde segundo Carvalho de Oliveira (2004):

 

“… existiam duas religiões principais – cabe notar que não eram as únicas, mas as mais influentes – a de Apolo, e em Elêusis, a de Deméter. A Religião da Grande Mãe era de mistérios, seu culto era popular e fazia-se necessário a iniciação para nele participar. A de Apolo, por outro lado, mantinha um caráter cívico e era considerada mais ou menos oficial em grande parte do território grego” (p.12).

 

A experiência de possuir o outro pelo encantamento erótico transforma-se em um processo de enantiodromia* quando a própria possessão a qual o herói utiliza para se safar de sua sombra retorna a ele personificada no sacrifício imposto ou facticiadade do destino. É como se o inconsciente entrasse em um processo de homeostase na medida em que cometemos o que os gregos chamavam de Harmatia (transgressão) para com a própria natureza do inconsciente que se mostra como a face ambígua de todos nós.

Porém, a história não acaba por aqui, o processo de virada de Orfeu se mostra na segunda parte de seu mito quando este realiza uma Opus contra natura (Obra contra a natureza) – como se referiam os alquimistas – visando assim a auto redenção da perda da alma. Esse fenômeno é muito recorrente nos sonhos de incesto onde a ligação com o mesmo consanguíneo é um símbolo para a interiorização não natural (através da consciência) de algum carácter oposto contido no que é igual inconscientemente (JUNG, 2011).

Será que o desmembramento do herói ocorre por vias inconscientes como um martelo do destino ou efetivamente é dado pelo próprio processo de integração e desvelamento de si? A forma pela qual Orfeu morre ou o fato do mesmo haver compreendido seu sentido existencial é aqui o mistério de sua segunda face.

 

A outra face de Orfeu

Senti a necessidade de caminhar para o outro lado de Orfeu principalmente por seu mito ser muito lido e re-lido por diversos autores mitólogos, porém, por detrás de toda mitologia como nos ensina a psicologia, há o sujeito do mito, aquele que experiência a facticidade do processo de individuação. Este último pode ser uma espiral que “eleva” a pessoa a si mesma ou pode se transmutar em uma “roda das encarnações” dizimando e destruindo o sujeito. Desta forma a segunda parte do mito re-vela como Orfeu deve ser lido e compreendido em sua essência.

Como psicólogo me fascino com a realidade pois os mitos são a manifestação da mesma, são como que tragédias que quebram a lógica holliwoodiana de finais felizes (comerciais) aos quais estamos acostumados a consumir. A história humana não é feliz, não é comercial e está além do mercado consumista e da lógica da descartabilidade do outro.

Em seus mistérios Orfeu passa a tentar lidar ou unir-se novamente a sua dimensão mais íntima perdida no Hades, Eurídice. Em termos psicológicos ocorreu a perda da alma, um conceito da antropologia que descreve um estado generalizado de mal-estar ou depressão segundo Samuels, Shorter & Plaut (1986) citando Jung: “… o rompimento do relacionamento com a própria vida psíquica individual (…) perda de um senso de significado e propósito… e eventual depressão ou regressão”.

A descida ao Hades que Orfeu inicia não tem fim, pois ele perde a sua alma, se desintegra, cindindo o relacionamento consigo mesmo. A partir disso Orfeu funda o orfismo que se trata dos mistérios da religião do deus Dionísio o qual ele se torna um sacerdote após sua perda. Carvalho de Oliveira (2004) vai descrever que a imortalidade da alma, o bem divino e o mal titânico, a expiação da culpa através da reencarnação até a conquista da liberdade total da alma sem o círculo das encarnações são doutrinas fundamentais de seus mistérios. Todas essas doutrinas relacionavam o processo de desmembramento do deus como um retorno dos Titãs e o encarceramento dentro da roda das existências, portanto, o não-ser.

Assim o mesmo autor descreve o orfismo como uma religião de mistérios, separado da sociedade e o lado desconhecido da doutrina de Dionísio. Edinger (2006) vai estabelecer o paralelo do desmembramento de Dionísio se referindo ao processo de dissolução psíquica ou a solutio alquímica, que significa o retorno ao que há de mais primordial em nós, a Prima Matéria.           

“O Tema do desmembramento conduz diretamente ao mito de Dioniso. Quando criança Dioniso foi desmembrado pelos Titãs. Além disso, as Mênades que o adoravam eram desmembradoras, que faziam em pedaços quem se atrevesse a cruzar-lhes o frenético caminho (…) Muitos aspectos do princípio dionisiaco pertencem ao simbolismo da solutio” (p.79).

Sendo o próprio deus o qual Orfeu rendia graças, Dioniso simbolicamente estava atrelado a ideia do desmembramento, Orfeu se tornou uno com o deus pois experimentou na carne o mesmo destino. Assim o ciclo, nascimento, morte e renascimento passa a ser o próprio Ser de Dioniso. Portanto se insere na cultura ocidental a ideia de ciclos elevada a dimensão espiritual (transmigração das almas) e não só literal como era nas religiões antigas em que o sacrifício animal era necessário.

A ideia de ciclo permite compreendermos o Ser enquanto Devir. Para viver é necessário não-ser e só assim se justifica o renascimento enquanto emergência ou momento do vir-à-ser. Sendo desmembrado Orfeu é o simbolismo do retorno ao inconsciente matriarcal pelas mãos das Bacantes; como Dioniso, morre pelas próprias mãos (Bacantes), retorna a matéria prima, a sua essência. Sendo desmembrado ou estando em uma orgia sagrada Dioniso é a celebração da comunhão com a totalidade a partir do não-ser.

Orfeu introduz e marca o desenrolar da unificação dos opostos, pois quando bebe da água da memória do caminho direito da descida ao Tártaro ele se lembra de quem “é”, mas esquece que o mundo da alma é subterrâneo e lá ele precisa deixá-la, pois é na intimidade representada pela anima que o homem se torna completo, a intimidade simboliza o mundo que ninguém vê, que sempre está abaixo da terra e este é o ser da alma enquanto fugaz e inapreensível.

O culto a Dioniso nunca poderia celebrar a vida sem que o não-ser ou a morte como sacrifício fosse o centro de seus mistérios. Desta feita André Dantas (2009) expõe que:

“O ser humano adquire consciência da vida, do Ser, daquilo que é, ao contrastá-la com o não-ser do nada, pois tornando-se um ser-para-a-morte ele enraíza-se conscientemente na própria vida” (p.225).

A experiência da vida acontece sempre de forma consciente e por isso intensiva. Desta forma o encantamento órfico só acontece se a pessoa se implicou intensivamente no enfrentamento dos opostos que a vida é. Uma constante introdução, um eterno retorno e por isso um ciclo onde todos os momentos são justificáveis, nada é um erro e errado. Desta feita nunca se sabe sobre a quem irá se entregar, pois para estar aberto à alma é preciso sentir o medo de ser fragmento, ser um burro emocional, assim ninguém consegue ver sem antes sentir ou somente por sentir que Orfeu consegue ver.

Orfeu desconfiou que o submundo fosse diferente do que imaginava quando na verdade estava já imaginando o que realmente experimentaria, por isso sua cabeça se associa a ideia de oráculo, pois quando olhou para trás no Tártaro seu Si-mesmo já sabia que não possuiria aquilo que não é possuível. A desconfiança de Orfeu se transmuta assim em um aspecto intuitivo do ser dionisíaco, como que “premonitório”, o mesmo vê-através das ilusões, mas somente porque se entregou a vivência da ilusão como desconhecido. Em outros termos sua ilusão consistiu em acreditar perder o que nunca possuiu, o que lhe era mais íntimo e ao mesmo tempo mais estranho, a fugacidade e impermanência da própria vida.

A partir desta visão-através-das-ilusões podemos considerar o desmembramento do deus como uma forma de crucificação (sacrifício) e divinização, o processo ou desenrolar da imagem em seu fim lógico, pois “… enantiodromia é o estar dilacerado nos pares contrários. Estes são próprios do deus portanto, do homem divinizado, que deve sua semelhança a Deus à vitória sobre seus deuses” (JUNG, 1980).

Orfismo

 

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Enantiodromia:  Uma lei psicológica descrita a princípio por Heráclito citado por Jung (1980) que representa o movimento de homeostase onde tudo retorna ao seu contrário.

Bacantes: “Mulheres tomadas de paixão por Dionísio e entregues a seu culto com tamanho fervor, que por vezes chegavam ao delírio e a morte (…) Elas simbolizam a embriaguez de amar, o desejo de serem penetradas pelo deus do amor; como também a irresistível influência dessa loucura, que é uma espécie de arma mágica do deus”. (GHEERBRANT & CHEVALIER, 2006).

 

REFERÊNCIAS

 

BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. 10. Ed. Petrópolis. Vozes. 1999. V. II.

CARVALHO DE OLIVEIRA, Anselmo. Orfismo, uma nova dimensão do homem grego. Revista Ágora Filosófica. N 2. Jul/Dez 2004.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.

DANTAS, André. Psicologia Dialética. Fortaleza. Clube de Autores. 2009.

EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. São Paulo. Cultrix. 1985.

JUNG, Carl Gustav. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis. Vozes. 2011.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião. Petrópolis. Vozes. 1980.

SAMUELS, A; SHORTER, B; PLAUT, A. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. 1ª ed. Rio de Janeiro. Imago Editora. 1988. Disponível em: http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/perdalma.htm

 

 

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