A Psicologia de Dogville

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OBS: Este texto contém spoilers do filme!

O filme Dogville retrata os acontecimentos em uma pequena cidade dos EUA, onde aparentemente a vida é tranquila e pacata até a chegada de uma estranha fugindo de um grupo de gângsteres chamada Grace. Em busca de um abrigo ela encontra Tomas Edison, um morador do vilarejo que nutre sonhos de lançar um livro sobre ilustrações a respeito da moral.

O filme tem o seu desenrolar em um grande palco sem paredes, somente com traços riscados no chão escrito com os nomes das casas das pessoas. O filme se passa em nove atos donde o desenrolar dramático é chocante e indigesto, porém, verdadeiro em sua nudez.

Esta nudez se revela no comportamento de uma comunidade que ao receber em seu centro Grace (graça) representando o estranho, ameaça à coesão do lugar remexendo o inconsciente e ao mesmo tempo a sombra das pessoas que depois de certo tempo começam a se aproveitar de sua culpa em estar estragando o “sossego” do lugar com a polícia a procurando sempre.

Grace é uma jovem interpretada belamente por Nicole Kidman. Esta, o tempo todo tenta através de todos os meios possíveis (desde engraxar o sapato da empregada da vila até servir de objeto sexual para todos os homens do lugar que passam a estuprá-la todas as noites), agradar as pessoas, ser cortês e mostrar uma moral imaculada, sempre no sentido de ser aceita na comunidade, que de algum modo parece nunca aceitá-la.

Alguns elementos no filme merecem destaque como o nome do único cachorro da vila, Moisés que representa justamente o que falta a vila, a figura de uma real autoridade, de um arquétipo do Grande Pai. O tempo todo tanto Moisés, quanto as paredes das casas são riscadas no chão, mas não existem denotando uma total ausência de separação entre mundo interno e externo.

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Aquele que deveria ser o líder, Tom, também é carregado pela psicose de massa em que o mais importante é sempre ser igual à imagem a qual todos sempre se serviram para nomeá-lo. Este (Tom) entrega Grace aos gângsteres, demonstrando que ao final, Dogville nunca se abriu para o novo fazendo do estranho um bode expiatório para todas as culpas não assumidas pelos moradores. Tom, nunca fora fiel a sua filosofia de abertura para o outro, já que nunca acolheu este outro, nunca houvera outro.

Assim, este personagem demonstra a realidade política social de pessoas que querem se promover através da publicidade de bons atos, mas que na verdade, na intimidade é justamente o contrário, a hipocrisia social.

Assim, Moisés continua somente em sua presença fantasmática como um latido no cenário, assim como as portas e paredes mostrando que em uma sociedade em que não há diferenciação entre interno e externo, público e privado, onde todos sabem a respeito de todos não há como colocar ninguém para dentro já que não há um dentro.

Dogville é o exemplo de uma sociedade que fracassa, da ausência de um líder que por não existir é escolhido como o mais fraco, o mais manipulável, este é Tom. É muito interessante o desenrolar da história que mostra o gângster chefe como o pai da protagonista Grace. Ele quer apenas conversar com ela, apenas mostrar a mesma, sua arrogância em não reconhecer que as pessoas precisam de uma oportunidade para confrontar seus erros e  isso só é possível através de outro que demonstra esses erros, não precisando ser aceito pelas pessoas.

Mas Grace demora a conseguir digerir as palavras do pai, tanto quanto Dogville, Grace só legitimou a lógica hipócrita daquele lugar, seu desapego abnegado, seu sacrifício e seu perdão na verdade só perpetuou a mesma lógica, era um combustível para a psicose coletiva de objetificação perversa do outro.

A esperança de Grace em ser aceita representada pelas luzes do cenário se transforma, para ela, em pura ingenuidade quando a mesma aceita o conselho de seu pai de que não é errado se abnegar ou ser bom, contanto que seja nos momentos certos. Assim, a figura do Grande Pai para Grace consegue ascender à consciência, mas em um processo compensatório, o encontro com o animus paterno de Grace a possui retirando sua capacidade de decisão e reflexão, ela consegue diferenciar sua personalidade aceitando sua origem como filha de um homem poderoso, mas ainda não consegue se livrar da arrogância. Antes era a abnegada, solícita e bondosa, depois passa a ser terrível e cheia de poder a ponto de eliminar perversamente a todos.

Ainda assim, há muita divergência com relação à Grace, ela consegue integrar sua sombra (arrogância) matando todos na vila e extirpando-a do mapa? Ou esse movimento é nada mais do que um processo coletivo de enantiodromia*, onde esta fora dominada pelo arquétipo sombrio do pai que era ausente naquela sociedade? Dá o que pensar!

De qualquer forma o que o filme nos dá a entender é que Dogville na realidade representa um lugar simbólico que diz sobre uma dialética entre os opostos psicológicos. Na medida em que Grace é tratada como um animal, um cão pelos moradores da vila, este cão devora a própria vila em sua fúria invisível (inconsciente). A domesticação que a vila exerce sobre Grace retira sua dignidade humana, mas revela o lado selvagem da vila.

“Quando o coletivo é considerado como um reservatório de possibilidades psíquicas, é uma força gigantesca capaz de fomentar delírios grandiosos e psicoses de massa. O oposto da individualidade era considerado por Jung uma identificação com o ideal coletivo, levando à inflação e, no extremo, à megalomania. Ele acreditava que o efetuador real de mudanças era o indivíduo, uma vez que a massa como um todo é incapaz de consciência” (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).

Assim, não reconhecer o seu animus paterno fez Grace se situar em um estado de ingenuidade moral (ainda que do lado “criminoso” sendo filha de Gângster), compensando isso através de uma atitude extrema de utilização de seu poder sendo o próprio martelo de condenação da vila.

Anima e Alteridade

Sabe-se que a imagem da Anima/Animus representa aquele fator produtor de projeções (JUNG, 1988, p.9), as fendas que a psique cria no mundo ao avesso de nossa percepção. Projetar um conteúdo no outro é moldá-lo “ao nosso querer”. A anima é o fator que sempre foge ao nosso querer como parte de nossas projeções. É o não-eu em nós, por isso este “moldar o outro ao nosso querer” reflete “outro querer” que se exterioriza na projeção revelando o próprio caráter, pois o não-eu revela/cria um eu. Mas este eu é sempre perceptível no descontrole e autonomia da noção de “outro”.

Deste modo em Dog Ville como não há diferenciação entre interno e externo, também não há oposição entre eu-outro. Uma alienação da anima, pois a mesma é o único arquétipo que poderia gerar a possibilidade de “um outro”, mas como Grace é abusada, este outro é eliminado da vida social, ou seja, das relações, que a partir disso inexistem.

A natureza relacional como uma experiência dialética da anima/animus gera a possibilidade da unidade-na-diferença, assim como da diferença-na-unidade (DANTAS, 2009). Sem que isso ocorra não há a possibilidade de haver uma sociedade, apenas um agregado de corpos anônimos nomeados apenas como massa.  É neste sentido que a “massa não pensa”, não possibilita a individualidade.

Este outro representado como o forasteiro, preenche um lugar na vila de manutenção do status quo, o “bode expiatório”. Portanto não há um outro que possa legitimar um Eu, pois o eu só se reconhece em um espelhamento do outro. Para Grace este lugar é sentido como uma experiência de abnegação santificada, pura defesa contra sua condição de bode expiatório da culpa da vila inteira. Esta culpa se apresenta na ambivalência afetiva existente em santificar este estranho, mas na medida em que se pode usá-lo e abusá-lo.

“Este totalmente outro em mim que me move para mim mesmo no outro”, é o que irá possibilitar a experiência relacional, produzindo uma multiplicidade de diferenças que unifica cada sujeito em uma coerência com a própria identidade. Desta feita a forma como a vila lida com a protagonista que é um cão invisível produz uma compensação da violência através da figura do pai em que a eliminação do outro é eliminação de si.

A inconsciência da anima/animus é o maior produtor de conflitos velados nas relações, pois o conflito aberto onde o outro é identificado gera os mecanismos reguladores de tais conflitos onde os lugares são definidos como justo x injusto, culpado x inocente, honesto x desonesto. Portanto, no contexto social o ego produz sombra e a sombra arrefece os conflitos por integrar o homem em sua medida social.

“Deste modo à abertura ou não que darei a mim mesmo é a mesma abertura que realizo ao perceber ou não o outro”. Em um universo fechado não há a possibilidade de uma diferença que gera um eu (igual), da mesma forma não há identidade. A única possibilidade é a destruição e a morte, pois naturalmente as coisas se pluralizam, se dividem e se expandem.

 

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O filme nos dá uma significativa lição do que representa uma sociedade massificada em que o outro não é considerado, forças se compensam e retornam ao seu lugar de origem nos dando uma sensação de satisfação (como nos sentimos quando o filme acaba e Grace se vinga), mas o indivíduo da mesma forma continua inexistente, Moisés ainda continua esquecido e deixado para trás.

No estado sócio político atual, observamos posicionamentos partidários que de alguma forma eclipsam a vontade individual, ou a negação de uma totalização do outro e de si. Onde não há a possibilidade de uma diferença, também não há reflexão, pois a oposição não se constitui. A política sob este princípio não comporta uma dimensão racional, não é efetiva, não resolve, apenas exterioriza estados cindidos de reações emocionais desproporcionais.

 

*Enantiodromia: “Passar para o outro oposto”, uma “lei” psicológica pela primeira vez esboçada por Heráclito, significando que mais cedo ou mais tarde, tudo se reverte para seu oposto. Jung identificava isso como “o princípio que governa todos os ciclos da vida natural, desde o menor até o maior” (CW6 parág. 708). (SHORTER, SAMUELS & PLAUT, 1988 http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/enantio.htm).

 

REFERÊNCIAS

DANTAS, André. Psicologia Dialética – uma crítica interna a psicologia junguiana. Fortaleza. Clube de Autores. 2009.

JUNG, Carl Gustav. Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis. Vozes. 1988.

A Psicologia de Dogville

Sísifo e o Ato Criador

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O Mito

“Sísifo casou-se com Mérope, uma das sete Plêiades, tendo com ela um filho, Glauco. Certa vez, uma grande águia sobrevoou sua cidade, levando nas garras uma bela jovem. Sísifo reconheceu a jovem Egina, filha de Asopo, um deus-rio, e viu a águia como sendo uma das metamorfoses de Zeus. Mais tarde, o velho Asopo veio perguntar-lhe se sabia do rapto de sua filha e qual seria seu destino. Sísifo logo fez um acordo: em troca de uma fonte de água para sua cidade ele contaria o paradeiro da filha. O acordo foi feito e a fonte presenteada recebeu o nome de Pirene e foi consagrada às Musas. Assim, ele despertou a raiva do grande Zeus, que enviou o deus da morte, Tânatos, para levá-lo ao mundo subterrâneo. Porém o esperto Sísifo conseguiu enganar o enviado de Zeus. Elogiou sua beleza e pediu-lhe para deixá-lo enfeitar seu pescoço com um colar. O colar, na verdade, não passava de uma coleira, com a qual Sísifo manteve a Morte aprisionada e conseguiu driblar seu destino. Durante um tempo não morreu mais ninguém. Sísifo soube enganar a Morte, mas arrumou novas encrencas. Desta vez com Hades, o deus dos mortos, e com Ares, o deus da guerra, que precisava dos préstimos da Morte para consumar as batalhas. Tão logo teve conhecimento, Hades libertou a Morte e ordenou-lhe que troxesse Sísifo imediatamente para os Infernos. Quando Sísifo se despediu de sua mulher, teve o cuidado de pedir secretamente que ela não enterrasse seu corpo. Já no inferno, Sísifo reclamou com Hades da falta de respeito de sua esposa em não o enterrar. Então suplicou por mais um dia de prazo, para se vingar da mulher ingrata e cumprir os rituais fúnebres. Hades lhe concedeu o pedido. Sísifo então retomou seu corpo e fugiu com a esposa. Havia enganado a morte pela segunda vez. Mas um dia Sísifo morreu de velhice e Zeus enviou Hermes para conduzir sua alma ao Hades. No Hades, Sísifo foi considerado um grande rebelde e teve um castigo, juntamente com Prometeu, Títio, Tântalo e Ixíon. Por toda a eternidade Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada “Trabalho de Sísifo”.[1]

***

 A que serve o mito?

A princípio a leitura de um mito nos impõe certos critérios para que possamos elaborá-lo de uma maneira psicológica. A princípio temos que estar atentos as nossas intuições e reações imediatas psicofísicas para primeiramente ter a capacidade de nos abismar, encantar e a partir daí começar a contemplar as imagens que ele nos suscita.

O mito é sempre uma narrativa que mescla conteúdos concretos, metafóricos e principalmente simbólicos que extrapola o tempo mundano[2] e nos insere no chamado Kairós dos gregos que é nada mais do que o tempo da presença.

Para clarear melhor o leitor sobre a experiência mítica antes de abordarmos Sísifo tal temporalidade pode ser compreendida como uma “…experiência de duração que se relaciona não ao calendário, mas à vivência, uma experiência que não pergunta pelo tempo, mas é o próprio tempo, portanto intemporal (…)É através do ato que o ser se perpetua em seu estar-sendo, no ato de deixar-ser” (HELLER 2006, p.83).

Deste modo a vivência do mito remonta uma duração que transcende o tempo por atualizar uma experiência arquetípica, que embora seja ancestral, consegue presentificar-se no agora. O que introduz um paradoxo: Como é possível o originário existir no agora? Ou como o agora se transfigura ao presentificar não um passado, mas uma ancestralidade numinosa que toca também o futuro?

Por isso a importância da narrativa mítica que irá remontar a experiência originária colocando a pessoa em contato com a natureza humana. Dantas (2009, p. 291) amplia quando diz que o presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina, tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que está porvir. Assim estamos total e completamente enraizados no presente.

Deste modo que a narrativa do mito restaura a temporalidade do ser da experiência, coloca o indivíduo em contato com o agora absoluto. O que Sísifo trás com sua pedra?

O Símbolo em Sísifo

Podemos observar nos mitos deste herói que ele engana a morte por duas vezes, na primeira aprisiona Hades e na segunda engana Tânatos e Perséfone. Todas essas potências do mundo subterrâneo ou poderíamos dizer, inconsciente.

Sísifo não somente engana, mas estabelece uma troca com o deus rio Asopo que lhe confere uma fonte eterna em troca das informações acerca do paradeiro de sua filha Égina. Aqui vamos observar o confronto entre o poder (Zeus) e o devir (Asopo).

No mito diz que Asopo não consegue derrotar Zeus, a personificação do poder, se olharmos por outra lógica observamos que faz muito sentido quando o poder não pode ser derrotado pelo devir pois assim o mesmo se torna um contrassenso. O devir não precisa de nada além de si mesmo, pois é a manifestação do próprio fluir da vida.

Deste modo servindo a Asopo, Sísifo conserva em si o poder de Zeus que nega e afirma o devir existencial. Deste modo a fuga de Sísifo não é uma negação neurótica da morte, mas muito mais, a negação de um poder inautêntico, uma hybris (descomedimento) do próprio poder e ao mesmo tempo uma conservação do próprio vir-a-ser.

Sísifo ao enganar a morte não se livra de morrer, não comete uma transgressão contra Hades, pois da morte ninguém foge. O ato simbólico de enganar a morte duas vezes simboliza que o herói dominou a arte de viver a ponto de escolher quando deve morrer. Pois o morrer para Sísifo significa o sofrimento eterno nas mãos de Zeus.

Porém, Kast (1997, p. 71) nos descreve que o importante para Sísifo não seria pertencer ao séquito de Zeus, mas sim, ao séquito do deus-rio, de um deus que personifica precisamente a transformação e o fluir eterno, por conseguinte a mudança constante. Tal atitude também é encontrada na filosofia de Heráclito de Éfeso em que afirma:  “Nós não podemos nunca entrar no mesmo rio, pois como as águas, nós mesmos já somos outros”.

“Deste modo como um homem criativo, ele não pode respeitar completamente a ordem antiga; todo criativo se coloca contra uma ordem estabelecida e se confronta com ela” (ibid).

Podemos observar que há uma luta constante contra o poder representado por Zeus no sentido de sempre negá-lo, mas afirmá-lo ao mesmo tempo. Na condenação da morte Sísifo torna-se uma figura trágica em que não pode desistir do sofrimento de sua frustração que se torna eterna.

Porém, o herói se torna um baluarte do fluxo da vida, da energia criativa e do seu devir enquanto não desiste de conter a frustração de sua impotência frente sua existência (pedra). Ao mesmo tempo a fonte também inaugura um símbolo da totalidade na eternização da vida. Sua condenação (frustração e sofrimento) é eterna, mas seu influxo vital de êxtase dionisíaco que inaugura o tempo do agora também é.

O mais interessante do mito é que a mesma pedra a qual Zeus se transmuta para fugir do deus-rio é também a pedra a qual Sísifo precisa arrastar para sustentar sua frustração da impotência. A pedra que não chega ao cume é sempre a experiência da impotência auto sustentada.

Não a impotência de Zeus, aquela que inflama cada vez mais a cobiça dos homens, mas uma impotência de Asopo, àquela que justifica um fluxo autêntico, um auto acontecer. A água da fonte que nada pode, pois está no fluir de tudo. Não há hierarquia onde há fluxo ou uma hierarquia onde tudo flui o poder é justificado, pois está em todas as posições.

O Tempo como Fluxo

Não podemos deixar de atentar que Sísifo inaugura outra temporalidade ao iniciar na senda da eternidade tanto de sua condenação (morte), quanto de sua existência (vida).

Ambas as posições de vida e morte se dissolvem interpenetrando-se uma na outra quando Sísifo se torna um símbolo da abertura para o absurdo da eternidade. Nada começa a fazer sentido, ou então o mito inaugura outro sentido.

Tanto uma vida condenada, quanto uma condenação viva visa única e exclusivamente subordinar o poder luminoso de Zeus ao vir-a-ser criativo de Asopo, que justifica o poder pessoal do herói enquanto tempo presente, uma duração que se perpetua por deixar-ser.

O Ato Criativo

Deste modo, arrastar a pedra eternamente nunca desistindo se torna um absurdo, pois quebra uma lógica instrumental e inaugura um tempo presente (Kairós), em que toda subida e toda tentativa se torna sempre uma primeira vez, uma nova criação. Tais momentos não só exprimem o criativo em nós, mas retroalimenta o ato de criar o tempo próprio.

Sob o prisma de Sísifo todo trabalho onde o sujeito procura se adequar a um tempo-de-fazer, se torna uma defesa contra o tempo que inaugura o próprio fazer ou a prática apropriada. Assim todo trabalho que revela o fazer-apropriado, diante de uma lógica instrumental, nutre a alcunha do inútil.

Portanto a abertura ao tempo presente de um fazer-apropriado já é em si a proteção contra toda e qualquer forma de desapropriação do trabalho realizado pela lógica instrumental. Neste lugar o tempo de Zeus não faz sentido, nem ser útil diante do outro, pois o sujeito é em si o seu próprio fazer que se realiza na inutilidade transgressora de um tempo impróprio.

Finalizando! O fazer do tempo presente é uma prática que não se esgota em um espaço de tempo, mas que se concretiza em uma dada duração própria, uma duração condicionada à natureza do próprio ato. Sempre haverá uma lógica instrumental que procura ordenar o tempo, porém é o ato criador que dita e dá significado a este mesmo tempo.

A música nada seria se não houvesse uma tentativa de medir a duração do tempo em compassos. Porém até mesmo os compassos e a métrica só fazem sentido ao revelarem outro tempo, um tempo subordinado a criação da alma.

 

REFERÊNCIAS

DANTAS, André. Psicologia Dialética – uma critica interna a psicologia junguiana. Fortaleza. Clube de Autores. 2009.

HELLER, Alberto Andrés. Fenomenologia da Expressão Musical. Blumenau. Letras Contemporâneas. 2006.

KAST, Verena. Sísifo – A Mesma Pedra-Um Novo Caminho. São Paulo. Cultrix. 1997. (Coleção A Magia dos Mitos).

 

 

[1] Disponível em: http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2010/07/sisifo.html

[2] Tempo Mundano: Segundo Heller (2006) “… chamamos de tempo do mundo ao tempo que se torna público na temporalização da temporalidade. Quando olho para o relógio a fim de orientar-me e dizer que horas são agora, já parto de um tempo que fundou e dirigiu esse olhar para o relógio” (p.66).

Sísifo e o Ato Criador

O Poder e o Complexo de Salvador

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Aqui jaz a grande questão que permeia todos os meios de comunicação e movimenta partidos, instituições e a animosidade popular. O que se entende por poder? O poder falado é o mesmo poder vivido?

As maiores críticas do social com relação à política gira sempre em torno de um poder que superfatura, corrompe e assume posições independente da vontade popular, dentre outros desvios éticos. Deste modo o brasileiro médio sente uma ira difusa por ser saqueado constantemente. Mas essa ira não desemboca nas atitudes permanecendo em um nível de pensamento e opinião cínica.

Acredito ser essas as grandes questões que giram em torno do poder no que tange a política, que é um poder autoritário sim, mas que se perpetua nesta condição. Se há um poder que faz o que quer, também há uma sociedade que o permite fazer, sem nada fazer. O discurso do brasileiro médio, portanto, vela uma atitude de conformismo que produz ódio e indiferença.

O conformismo gera o ódio pelo simples fato de só conseguir encontrar a corrupção no outro acima de si, perpetuando assim uma relação de unilateralidade, como se o poder existisse em um lugar específico sempre, acima de nós. A política de um modo geral constela nas pessoas esse tipo de animosidade em que as fazem crer que o poder só tem um lugar possível desapropriando a todos desta dimensão ontológica.

O complexo de Salvador

Tal relação parece revelar um sentimento de dependência do cidadão pela figura de um salvador, desumanizando a si e ao outro. Ao mesmo tempo, produz neste outro um sentimento de impotência e raiva por um poder que não possui, ainda que pense o contrário. Desta forma o ódio político revela uma relação onde não há um encontro, mas muito mais impulsos atávicos pela busca ou fuga de um salvador.

A palavra complexo foi criada pelo psicólogo e psiquiátra Carl Gustav Jung e se refere a uma natureza psicológica cindida onde os mesmos se manifestam como “… personalidades parciais ou fragmentárias” (JUNG, 2008, p. 68). Portanto tais sub personalidades constituem o estado natural do psiquismo. Ainda assim, Jung falou sobre os complexos autônomos que se mostram sempre no descontrole que o indivíduo sente diante dos afetos constelados por tais experiências. Os complexos autônomos são agregados de imagens de experiências pessoais que possuem os indivíduos e não o contrário, retirando destes, qualquer controle ainda que relativo de seu comportamento.

Esquizo

O complexo de Salvador se constela no social no desejo popular incontido de que o político seja a esperança de um padrão de vida melhor. E quando remeto a padrão de vida, não digo somente do econômico. Deste modo em épocas de eleição o cidadão quer acreditar com todas as suas forças que seu voto terá algum impacto de representatividade na esfera do poder. Ele quer ser ouvido em suas angústias e sofrimentos, sempre associados a causas materiais. Assim surgem os partidos, novas igrejas que visam clivar os interesses dessa pessoa em um continente coletivo de “irmandade”, “cumplicidade” e “valorização” social.

Deste modo, pertencendo a uma denominação político-religiosa o sujeito que quer fazer parte do corpo social, mas para fazer-se cidadão precisa se “filiar” (coincidência se não fosse trágico) a igreja do Grande Pai. Dentro desta dinâmica grupal, depois de ter sido aceito dentro do corpo social por pertencer, através de uma relação unilateral que visa a um discurso que mascara o poder, o complexo é legitimado ganhando assim autonomia. O complexo é legitimado por ser uma possessão consentida pelo corpo social, afinal temos que ser cidadãos “conscientes”.

A grande questão não está em ser ou não aceito, pertencer ou não ao corpo social, mas muito mais na inconsciência que o indivíduo nutre com relação ao próprio poder. A sua própria capacidade em se autorizar em sua vida, em fazer-se ouvir. Daí vemos a grande importância dos movimentos reacionários como forma de se fazer ouvir, porém o buraco é mais em baixo. Pois, até que ponto o sujeito precisa continuar a fugir da própria individualidade para poder se permitir fazer-se-ouvir?

“O complexo de Salvador, por certo, não é um motivo pessoal; é uma ideia universal, uma esperança de todo mundo, em qualquer época da história. É a ideia arquetípica da personalidade mágica” (JUNG, 2008, p. 144).

Deste modo a política constela um afeto e imagem que já existe como potencial no ser humano. Porém tal imagem muito frequentemente se torna ativada em uma época tão cheia de problemas e desorientações como a nossa. Em um momento de pânico tais elementos da psique entram em ação (ibid).

Quanto maior for o nível de dependência do indivíduo pela imagem de um Salvador externo, maior será o seu ódio. Da mesma maneira quanto mais inconsciente o sujeito estiver de suas desorientações e angústias, maior será sua dependência e consequente ódio. Um círculo vicioso!

A partir daqui se torna um tanto quanto lógico o fato de se a pessoa entrar em contato com tais angústias o ódio pode aumentar e nada se resolver. Porém é justamente essa a ideia que retroalimenta o complexo gerando mais autonomia do mesmo, a questão do “resolver”.  A lógica patriarcal-regressiva entende que há um estado de coisas que precisa ser mudado, mas que esta mudança sempre precisa necessariamente partir de uma esfera de poder aquém do sujeito.

Assim se projeta em todo um sistema burocrático-político que ganha cada vez mais autonomia, a capacidade de produzir milagres, alterar cursos econômicos e gerenciar toda uma existência insatisfeita. O grande problema aqui não é a existência ou não do sistema burocrático-político, mas do valor que se atribui a este quando na verdade deveria representar apenas um meio pelo qual o indivíduo pudesse inserir sua capacidade de produção e criação, legitimando-a socialmente.

Criou-se assim uma ilusão de que para resolver problemas, precisamos instituí-los politicamente na esfera de um poder que em si é burocrático e não muda. Preferimos instituir o poder em um lugar seguro do que assumir que a questão do poder envolve muito mais do que segurança.

Me refiro aqui não a uma luta por melhores condições de vida que envolve sim políticas públicas e definições partidárias. Isso é um dado um tanto quanto óbvio, precisamos sim nos posicionar frente a classe ou lugar social ao qual pertencemos, porém remeto aqui que esse lugar ao qual pertencemos não mudou independente das siglas, continua sendo a submissão ao poder que é a-partidário em sua essência institucional. A grande questão é o sentido do ódio por trás deste contexto, até que ponto é revolta, até que ponto é o mesmo princípio que motiva os demais políticos? Não temos como saber ou responder já que a história é o terreno do ilimitado e segue adiante em uma sinuosidade imprevisível.

O Projeto Ético-estético da Individuação

Tal atitude diante de nossas insegurança vai na direção oposta das convenções sociais a respeito do-que-fazer consigo mesmo. É nessa linha que Michel Onfray (1995, p. 39) expõe que os objetivos do Estado e outras instituições é fazer com que o sujeito alimente sua edificação com a submissão do outro (alienação do poder).

Deste modo o autor nos coloca que ao invés disso há outro caminho, o que ele chama de a prática da virtuosidade ou a arte das pontas. Para Onfray “… a preocupação virtuose supõe (…) a vontade de se construir sozinho, como diante de um espelho, no projeto único de fazer advir em si a bela forma com a qual se possa se satisfazer” (ibid.).

Observamos aqui outro caminho de direcionamento que é em si ético-estético, pois mais que tudo é preciso gostar do que se vê diante de si (espelho). “Só existe sentido, força e pertinência se esclarecidos por um projeto individualista, ético e estético” (ibid). Antes que me acusem de uma apologia ao narcisismo declaro que o projeto é sempre ético-estético e assim sujeito a um imperativo que é sempre maior que o sujeito, uma virtude.

Para Jung (2013, p. 468):

“A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto (…) É portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual (…) não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente (…) é separação e diferenciação do geral (…) mas que se encontra fundamentada a priori na disposição natural do sujeito”. 

Deste modo fica claro que o caminho da individualidade é sempre o oposto da horizontalidade eu-outro, um aprofundamento na relação a eu-Si mesmo. Um aprofundamento que exterioriza um caráter único, salta a vista e é sentido como necessário. Uma relação que a partir da matéria prima do eu-outro, produz um outro-eu!

 

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis. Vozes. 2008.

_____________. Tipos Psicológicos. Petrópolis. Vozes. 2013.

ONFRAY, Michel. A Escultura de Si. Rio de Janeiro. Rocco. 1995.

 

O Poder e o Complexo de Salvador

O Amor “Preto no Branco”

Aline psi

 

Aline Stefaneli é biomédica e psicóloga clínica formada pela Universidade Paulista – UNIP. Atuante em Ribeirão Preto é amante de livros, música, artesanato e poesia.

 

 

Segundo a expressão antiga: “preto no branco”, significa o real, o que é legitimado e tido como verdade. E o no amor? Quanto ao amor legitimado por si mesmo é real na claridade dada pela unicidade de cada ser humano em sua existência e em suas experiências durante suas relações afetivas. Todos nós esperamos por esse encontro do amor verdadeiro, mas esquecemos de que o inverso é refletido por permitir que o amor nos encontre e que, nesse encontro possamos manter nossa verdade não como unânime, mas como algo compartilhado.

Amor 1

Amar verdadeiramente alguém é nutrido pela crença de que esse amor nos mostrará quem somos ou o que devemos ser, mas não devemos nos esquecer da nossa maturidade de autenticidade que está intimamente ligada à nossa essência. “A tampa e a panela”, “a metade da laranja”, “a cara metade” virou clichê quando descobrimos que cada um é como é e pode nos oferecer o que possuem e nada mais que isso dentro de sua própria completude. E vice-versa. A completude buscada nessa jornada do amor é reavaliada em nós mesmos o tempo todo. Portanto, não devemos deixar que caiba ao outro o preenchimento de ser.

Amor 2

Os amantes precisam aprender indefinidamente a linguagem um do outro, onde o amor é um abismo onde não existe saída a não ser entender os mal entendidos e estar consciente dos limites do outro. Sabendo que amar segundo Lacan (teórico da Psicologia) é dar o que não se tem, que é algo além de si mesmo. Por isso é importante saber dos limites mentais e emocionais envolvidos na relação a dois.

As pessoas acabam falando muito sobre o amor, mas não conseguem definí-lo ao ponto de uma segurança consciente e controle. Então mesmo não sabendo exatamente o que seria o amor, a imagem que se tem fica um tanto permeada pela ilusão e a fantasia do que realmente é. O permitir que o amor nos encontre tem consequências diferenciadas do que realmente se espera do “amor”. Não podemos olhar para o amor acreditando que isso nos salvará da nossa angustiante existência e que será um bote salva-vidas. Essa maneira de encarar o amor não tem nada de “preto no branco”.

Amor 6

O amor é um sentimento que temos por aquela pessoa em especial de forma harmoniosa e que nos traz paz, tendo emoções importantes e intensas em sintonia que são as de natureza erótica e intelectual que podem levar a um nível de intimidade diante da “estranheza” do outro. O amor é a base de um relacionamento em que o crescimento se desenvolve melhor em uma dinâmica de entrega e doação. As pessoas precisam esperar o que se pode esperar do amor e nada mais. Ou tudo mais.

Amor 5

Nem sempre o amor “preto no branco”, é preto e branco. Permita-se a descoberta de infinitas cores e se surpreenda com esse sentimento que move a vida. “Não me lembro mais qual foi nosso começo. Sei que não começamos pelo começo. Já era amor antes de ser.” (Clarice Lispector).

O Amor “Preto no Branco”

Alteridade, uma Ética da Escuta

 

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A ideologia de esquerda utiliza um discurso de igualdade-sentimental para justificar a sede de um poder imoral. A ideologia de direita utiliza um discurso de liberdade-individual para justificar sua busca injusta e covarde por enriquecimento se mantendo no mesmo poder, por isso também imoral. Com isso aprendemos que se reduzir a quaisquer ideologias sendo controlado por partidos e pensamentos de massa, faz com que a pessoa se perca de sua dimensão individual provocando desvios éticos.

Isso se dá principalmente porque o pensamento ético é intrinsecamente atrelado a dimensão individual e histórica da pessoa, pois é neste lugar psicológico onde ela irá ter autonomia para avaliar objetivamente suas ações. Agora, o que ocorre quando a pessoa se volta para si e se descobre um ser massificado? Sem individualidade?
Ou ela se empenha em um trabalho de construção de si e por isso ético-estético que sempre é um segredo (não social), mas que justifica seu ser-com-o-outro, ou ela adere a ideologias, as quais fará com que ela não precise pensar e sinta-se pertencente a uma tribo, um lugar onde será aceita mais facilmente.

Aprendemos também que para se colocar de igual para igual com o outro, até mesmo economicamente não é necessário defender uma ideologia, ou até o fato de se aderir a isso, pode revelar justamente o contrário, um desejo inconfesso por dominação.
Aprendemos também que ser um indivíduo livre não significa enriquecer covardemente em detrimento do outro, isso não significa liberdade, mas uma prisão em um amor próprio e narcisista onde não há um outro, portanto não social, psicopático. Pode representar justamente o oposto, um desejo inconfesso por ser amado e por não conseguir o sujeito se lança em uma vingança perversa inconsciente (demissões, coações no trabalho etc).

Todos nós buscamos ser aceitos pelo outro e isso nos insere em um dilema psicológico onde o fato de voltar-se a si pode necessariamente jogar o outro para um plano de fundo, assim como voltar-se para o outro nos joga igualmente para a mesma situação. O que fazer então? Nada! Simplesmente porque esse voltar-se para si insere a pessoa justamente entre esses dois lugares que possuem o mesmo direito, pois não há uma exclusão do outro sem que ocorra uma exclusão de si, pois na Psique, o outro é sempre um outro-em-si, que se faz em si.

“Alma deriva do grego Psyché, que no latim foi traduzido por anima, sendo o ponto de vista da interioridade em qualquer lugar (…) A anima está sempre acompanhada e sua essência só pode ser captada em um contraste”  (DANTAS, 2009, p. 46-47).

E o eu é sempre um eu-no-outro, que precisa do outro para se fazer. Desta forma pensar, sentir e agir sobre esta ótica em que interno e externo se conjugam nos eventos sejam eles quais forem é o pré-requisito principal para que cada um de nós comece a pensar eticamente. Mas isso é sempre um trabalho psicológico, pois nesse âmbito não existe verdade que valha mais ou menos, pois esta sempre se justifica para alguém que a vive.

Um pensamento social não dissocia ideia de relação, mas a relação produz uma nova ideia apesar das divergências, por isso é dialética! Uma atitude social é sempre uma atitude de abertura para o outro, pois todas as verdades se justificam.
Desta perspectiva, ser aceito não é um trabalho fácil e depende mais de um cuidado com como-se-colocar para o outro (atividade passiva), ao mesmo tempo em um cuidado de como-receber este outro (passividade atuante). Assim, para que eu assuma minha verdade preciso ter uma abertura para a do outro, assim como para que eu me abra efetivamente para o outro é necessário que eu assuma minha verdade pessoal e íntima.

Aqui se insere uma ética da escuta, pois considera essa correlação entre eu-outro como uma facticidade pois na medida em que sou afetado por este outro, ele fala da minha própria verdade, ou a evoca em mim. Deste modo a própria constelação de minha verdade através deste outro, justifica o que ele me diz, como verdade necessária e aí se insere a alteridade. Isso porque se sua verdade toca a minha, ambas se reconhecem uma na outra.

A alteridade se mostra como uma com-vivência de uma pluralidade de verdades que existem a partir de suas oposições e que expressam a complexidade da vida. Isso significa que a objetividade de um embate de ideias é proporcional a força ou legitimidade da ideia, ou seja, sua essência. Assim, eu só conseguirei dar a escuta ao outro, na medida em que consigo escutar minha verdadeira verdade, minha singularidade.

 

Quando falamos sobre espaços de escuta, não nos referimos a lugares físicos, mas sobre uma disposição psicológica que re-significa o ambiente tornando-o social. Espaços de escuta são lugares psíquicos em que a relação dialética se estabelece, onde as pessoas consideram e são consideradas.

Múltiplas metáforas podem ser utilizadas como por exemplo a ressonância afetiva, que se mostra como uma reação no outro causada por meu afeto que legitima o significado do contato no momento que ele se dá. Quando dizemos por exemplo que não estamos sendo representados politicamente, ou que estamos sendo roubados, dizemos de um estado de coisas onde a relação social não se estabelece, podendo ser considerado até psicopatia.

A relação social não se estabelece pois a ressonância da culpa que esperamos que este outro sinta não acontece. A relação social não se estabelece, pois a consideração coletiva através da punição dos corruptos, também não ocorre. Este estado de coisas pode ser compreendido como uma sociopatia do poder. Quando o valor que o indivíduo atribui a si mesmo, cinde as intenções de uma relação.

Sob esta ótica, reprimir o contato com as próprias verdades, faz com que o indivíduo também se lance em relações abusivas desconsiderando a si mesmo em uma atitude de descartabilidade de si. Descartar a própria convicção elegendo mentiras convincentes é o mesmo que dar ao outro um poder absoluto através de uma submissão cega.

Aqui aquele que se torna submisso, também não consegue ouvir nem mesmo escutar. Estará apenas no registro do dominado, vítima, inocente, apático, depressivo, porém irado. A ira do passivo-agressivo é aquela ira velada, ninguém a vê, mas sempre está ali. Um mal que corrói sem que se possa ver. Dar o estatuto de dominador ao outro também é uma forma de punir quando este lugar é absoluto.

 

REFERÊNCIAS

DANTAS, André. Psicologia Dialética. Fortaleza. Club de Autores. 2009.

Alteridade, uma Ética da Escuta

Carência, Dependência Emocional e Mídias Sociais

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Atualmente é muito frequente observarmos a tecnologia dos smartphones adentrando cada vez mais na vida íntima através dos chamados aplicativos de relacionamentos. Nas redes sociais jogos e testes objetivam aproximar as pessoas através de questionários sobre o amor, a pessoa certa, o próximo relacionamento etc. As relações como algo dinâmico, orgânico e plural por um lado ganharam mais um facilitador, porém é de se questionar até que ponto tal facilitador acabou por construir outra cultura das relações? Será que facilitamos as relações ou apenas construímos outra forma de se relacionar, ou não se relacionar?

A princípio, a cultura das relações virtuais acabou por possibilitar uma facilitação do acesso ao outro, mas não necessariamente da relação com este. Como nos relata Bauman (2004) em seu livro Amor líquido onde a lógica das redes é de conexão-desconexão. Em algum momento o internauta pode se conectar ou se desconectar de quem quiser. Portanto é notório o desejo de controle até mesmo deste espaço eu-outro.

O filme Her (Ela) do diretor Spike Jonze retrata uma época futurista onde a tecnologia dominou o mundo e as relações. O Filme relata a história de um homem chamado Theodore (Joaquin Phoenix), que ao sofrer com sua separação instala um aplicativo de uma namorada padrão, que irá se comportar da forma esperada em uma relação amorosa. Aqui também vemos a mesma lógica de controle das redes sociais. “Se eu quero uma namorada, posso comprar como em uma prateleira de supermercado”.

O mais interessante é que vemos a mesma tentativa de controle das fronteiras entre os países do Oriente Médio e da Europa no atual momento, em que o terrorismo assombra cada ponto cego. A lógica do consumo instala consequentemente a tentativa de controle das relações onde o prazer está somente na esfera egoica de deliberação, o que acaba paradoxalmente castrando a dimensão do desejo que é espontânea e polimórfica.

Deste modo as fronteiras entre eu-outro passam a significar uma tensão inerente que começa a se desdobrar inclusive nas redes sociais. Como o sujeito está sempre conectado sente-se na esperança de se relacionar (expectativa), porém tal relação pode nunca se efetivar. A tensão psicológica não é liberada gerando um constante estado de “expectativa de resolução”.

Aqui observamos um costume da onipotência onde o que importa é a fantasia de ser apreciado e amado, porém apenas na virtualidade. Mulheres e homens sofrem por criarem outra forma de sofrer, outra forma de se relacionar. Uma relação de constante medição e observação dos passos do outro, mas que é “segura”, pois não precisa haver o contato. A partir daqui criou-se também uma ideia de distanciamento emocional onde a carência afetiva é o discurso para qualquer forma de aproximação do outro. Por isso senti a necessidade de diferenciar carência afetiva de dependência emocional.

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A carência afetiva diz respeito a uma fragilidade intrínseca a personalidade, a sombra de cada um de nós. Nosso lado mais primitivo e descontrolado, portanto não é antinatural ou algo a ser extirpado. Uma boa relação afetiva perpassa sabermos sobre nossa sombra, sabermos impotentes em determinada esfera da vida. Porém, a confusão ainda é muito grande quando o indivíduo se proíbe de demonstrar afeto, confundindo o mesmo com carência, pois assim o sujeito vai “valer a pena” no mercado.

Nota-se também que sempre há um jogo de comparação, pois quando se está na lógica de consumo a pessoa compra aquilo que tem o melhor “custo-benefício”.  Assim, a cultura do virtual introduz um estado de constante contato do indivíduo com uma frustração inautêntica, pois é uma frustração construída por uma lógica de conexão-desconexão e não de um contato autêntico. Isso não significa que as pessoas não tenham um contato autêntico a partir das redes sociais quando a relação se efetiva.

Falo aqui de uma frustração por saber-se possuidor de uma sombra (certas fraquezas internas), o lado menos apreciável de si. Assim Jung (1988, p.6) vai colocar que “…a tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade tais como existem na realidade”, outra coisa é uma frustração auto produzida por pertencer a uma lógica que produz um constante contato com a mesma (Sombra), por não poder demonstrá-la na “prateleira deste mercado”. Deste modo a carência afetiva existe, é natural e necessária ser reconhecida na medida em que dá ao sujeito um olhar objetivo e realista de si frente ao outro, legitimando mais ainda a importância deste outro e preservando a relação.

Resumidamente é justamente esta tensão em vias de acontecer, quando obriga o indivíduo a engolir a expressão de seu afeto – que naturalmente perpassa uma falta estrutural – que produz uma rejeição de si frente ao outro, mas um outro que também nos produz. Um outro mais confiante e menos faltante. Assumir a sombra é não se definir por este outro, ou desmascará-lo em sua suposta potência.

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A dependência emocional é um comportamento irracional e desproporcional que diz respeito a uma privação afetiva sofrida na primeira infância ou em um período primitivo do desenvolvimento em que o sujeito não dá conta de se lembrar, mas que faz com que a pessoa estabeleça sempre um vínculo simbiótico com o outro.

Bolwby (2006, p. 4) divide entre privação parcial e privação total. A primeira “… traz consigo uma angústia, uma exagerada necessidade de amor, fortes sentimentos de vingança e, em consequência, culpa e depressão”. A privação total impede a pessoa de estabelecer novas relações com outras pessoas fazendo-a se isolar. Em casos severos há o desenvolvimento da psicopatia.

Adultos dependentes emocionais algum dia foram crianças que sofreram privação por quaisquer motivos, pais que também sofreram privação ou até ilegitimidade parental. De qualquer modo foram crianças que sofreram uma “rejeição social”. Neste texto focarei  a privação parcial, aquela em que o indivíduo procura nas relações, substitutos para as funções de um cuidado materno ou paterno.

A privação parcial insere o indivíduo em relações simbióticas em que os vínculos interpessoais são inconscientes, facilmente estabelecidos e difíceis de serem rompidos. São passionais por natureza e possuem muitos conflitos desagregadores. O término de um relacionamento desses muitas vezes precipita a eclosão de uma neurose, estimulada pela necessidade íntima de assimilar os aspectos de si, antes projetados no outro (SHARP, 1991).

As características de uma relação simbiótica é a incapacidade de um dos parceiros ou de ambos de realizarem tarefas autônomas desde os mais graves como a incapacidade em ficar sozinho, ou escolher a própria roupa, atividades da vida quotidiana, até um apego desproporcional ao outro a ponto de entrar em desespero por fantasias irracionais de abandono.

O ciúme excessivo é muito comum nestas pessoas, geralmente voltado para parentes como pai e mãe, ou amigos, ou toda pessoa que passe a ganhar a atenção do parceiro. A mesma atitude de apego se mostra também em um distanciamento do parceiro, procurando sempre mantê-lo inseguro com relação ao vínculo, pois para o sujeito que fantasia somente a insegurança atrai. Esta fantasia é motivada pela crença de que o contato afasta o outro demonstrando insegurança e apego inseguro.

Este tipo de manifestação da dependência emocional pode muito bem ser confundida com seu oposto, uma segurança afetiva, porém o indivíduo sempre se revela nas constantes tentativas de quebrar o sentido de exclusividade do outro, fazendo-o se sentir substituível. Porém, logo que o outro se distancia, este não sabe fazer-se importante em sua própria companhia, tendo todas as reações acima descritas como ansiedade, angústia, desespero, raiva incontida e grande necessidade de amor que pode desembocar em uma promiscuidade sexual.

O que vemos nas redes sociais pode conter as duas coisas dependendo de sua intensidade de manifestação. É muito importante salientar que as redes sociais representam um importante passo nas comunicações, porém em termos psicológicos as relações nunca mudaram  em sua estrutura vivencial. É importante saber que a partir do momento em que tanto a carência quanto a dependência, quando não são expressas, aceitas e reconhecidas, produzem um sofrimento bem maior.

Assim, somente sentir-se só, sofrer por isso pelos jogos eróticos fracassados ou pelo sentimento de rejeição frente ao outro, não se configura como dependência emocional. Mas na medida em que a pessoa restringe sua vida social a somente seu aspecto virtual em que a tensão nunca alcança um repouso e satisfação, ou que o sujeito não retorna da frustração criando ressentimentos, podemos desconfiar de uma possível privação parcial e até uma dependência muito intensa. Quando o contato é sempre impedido ficando apenas na esfera da fantasia ou do virtual, há aí uma resistência em se abrir para o outro por este ser muito mais importante do que deveria.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro. Editora Zahar. 2004.

BOWLBY, John. Cuidados Maternos e Saúde Mental. São Paulo. Martins Fontes. 2006.

JUNG, Carl Gustav. Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis. Vozes. 1988.

SHARP, Daryl. Léxico Junguiano. São Paulo. Cultrix. 1991.

 

 

 

 

Carência, Dependência Emocional e Mídias Sociais

O Fio de Ariadne: O Herói em busca de si mesmo.

Teseu

O Mito

O conhecido mito do Fio de Ariadne ou mais conhecido como Labirinto do Minotauro narra a trajetória de Teseu, um herói que salvou a cidade de Creta do terrível minotauro, criatura nascida da união de Zeus com a mulher do Rei da cidade, Minos. Assim o rei constrói um labirinto para aprisionar a criatura, mas só conseguia através do sacrifício de sete moças e sete rapazes a cada sete anos.

Ariadne filha do rei Minos se apaixonou por Teseu,filho de Ageu rei de Atenas resolvendo ajuda-lo a matar o monstro. Assim em sua jornada ao interior do labirinto entrega uma bola de linha dourada para Teseu, bola que ajudaria a entrar no labirinto sem se perder. Assim foi feito, Teseu encontra e enfrenta a criatura derrotando-a com uma espada mágica entregue por Ariadne e retornando ao início do labirinto. Ao fugir da perdição do labirinto Teseu vê a verdade quando descobre que através do cordão, o ponto de partida era a chegada!

***

O Fio dourado representa neste mito a trajetória de descoberta psicológica que está além de nós mesmos rumo as nossas questões existenciais mais prementes. Assim é o processo de individuação descrito por Jung (1980):

“O sentido e a meta do processo são a realização da personalidade originária, presente no germe embrionário, em todos os seus aspectos. É o estabelecimento e o desabrochar da totalidade originária, potencial. Os símbolos utilizados pelo inconsciente para exprimi-la são os mesmos que a humanidade sempre empregou para exprimir a totalidade, a integridade e a perfeição; em geral, esses símbolos são formas quaternárias e círculos. Chamei a esse processo de processo de individuação”.

Desta forma o processo de tornar-se completo possui representações circulares como os mandalas budistas e cristãos. É bem interessante o símbolo do ouroborus ou a serpente de devora a própria cauda, um voltar-se para si que nos mitos é representado como um retorno às origens ou a morada natal como Sofia no mito Gnóstico onde sua ascensão simboliza o retorno da divindade a si mesma, no cristianismo atual, a assunção de Maria. Assim a mulher celestial que sobe retornando ao céu ou morada eterna representaria um retorno a si sendo a mesma conotação do ‘refletir-se’ no espelho ou o próprio processo de reflexão, insuficientemente entendido como pensamento dirigido. O Círculo pressupõe um retorno de nossa consciência atual de estado de coisas a uma dimensão mais interiorizada da vida, na psicoterapia tal experiência é chamada de circum-ambulação ou uma auto observação cuidadosa de todos os fenômenos que se dão em nosso campo existencial. Neste mito representado pelo labirinto circular!

 

imageO Ouroborus representação do sonho do Químico Kekulé que serviu de matéria prima para a ideia de átomo.

 

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Imagem pré cristã de Sofia.

 

 

O mito de Teseu demonstra a trajetória representada pelo pensamento labiríntico ou circular. O início se torna o fim! Na psicoterapia esta seria a experiência de “dar-se-conta” (insight) de que o inimigo estaria o tempo todo na própria interioridade do Herói, pois este precisou da Anima para salvar-se da perdição e não o contrário, sua alma o salvou! Ariadne ou a anima é o próprio telos (finalidade) da imagem mítica do herói que se vê perdido no labirinto.

O labirinto inverte a lógica diurna na lógica dialética onde o Herói é o meio pelo qual a Psique se utiliza (fio condutor) para negar o heroísmo colocando-o em pé de igualdade (mesmo nível) com o monstro (hybris). Pois o homem que afirma seu poder não se faz herói, pois não coloca em cheque sua posição onipotente, o herói pelo contrário se faz na subversão da hierarquia, ele desafia, assim como Aquíles e Heitor na mítica guerra de Tróia.

Este colocar-se em uma posição dialética é o motivo primordial da psicoterapia, a igualdade já é em si a vitória do herói sobre sua hybris, porém representa sua derrota em referência a Anima enquanto processo inerente ao inconsciente, ou o que chamamos de Psique. Todo herói é virtuoso e abnegado, desde que derrote seu minotauro, a inconsciência de sua Hybris (descomedimento).

O fio condutor não só o conduz ao inimigo mas também o leva de volta a sua alma personificada por Ariadne que “…sendo o ponto de vista da interioridade em qualquer lugar (…) converte os eventos em experiências [um movimento de transmutação de fenômenos em experiências de-si-para-si]” (DANTAS, 2009).

Muitos sonhos em que as pessoas se vêem perdidas em um território labiríntico possuem talvez o significado de que as mesmas necessitem de uma interiorização ou estão a mercê de um período de desagregação psicológica em que o fim último é um confronto aberto com sua inconsciência. O mito do herói prevê que a pessoa encontre um espaço onde possa entrar em contato com sua inconsciência de igual para igual mediada por um “fio”, para que não sucumba aos ditames e caprichos de sua vaidade e complexo de poder. Pois se sonha com a perdição, talvez se mostre como alguém orientado de mais, importante demais, iluminado demais. Lembrando que o minotauro é a vergonha oculta do Rei, sua sombra em ser traído por um deus, em não se reconhecer deus de si mesmo. O processo psicoterapêutico neste sentido se mostra como um lugar adequado onde nas palavras de Jung (2000): “O ego deve receber o mesmo valor, no processo, que o inconsciente e vice-versa”.

A Coragem do Herói não possui motivações pessoais, as mesmas não explicam seus feitos, pois estas se enraízam em uma base mais antiga e impessoal sendo ele apenas um instrumento de sua Alma. A experiência da Anima aqui, já é em si uma entrega, um colocar-se abnegado. Um sacrifício?   

REFERÊNCIAS

DANTAS, André. Psicologia Dialética: Uma critica interna a Psicologia Junguiana. São Paulo. Clube de Autores. 2009.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis. Vozes. 1980.

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis. Vozes. 2000.

O Fio de Ariadne: O Herói em busca de si mesmo.

TDAH

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A quem serve o diagnóstico de TDAH? Começo este pequeno texto com esta provocação. Este texto vai se diferenciar dos outros e o leitor pode estranhar a forma que ele será parido. Mas antes de tudo é preciso elucidar muitas questões no campo da psicologia que é uma ciência infantil no mundo e quiçá no Brasil. Me refiro a psicologia pois é muito comum associarmos este tipo de diagnóstico a área psicológica, porém o diagnóstico psicológico não rotula desta maneira, ele é muito mais compreensivo e experiencial do que rótulos.

Para quem não sabe TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) é um diagnóstico educacional baseado em princípios psiquiátricos de classificação. Não que o psicólogo desconsidere tais quadros, mas que estes não possuem mínima relevância para o psicodiagnóstico que os psicopedagogos dizem efetuar, mas que nem se aproximam.

Tais rótulos partem do princípio das ciências naturais de que o desenvolvimento é dado, algo que de algum modo é previsível e possui uma lógica linear e esperada. A linha de compreensão psicológica, seja ela de qual episteme for, deve conceber o desenvolvimento como uma construção da correlação entre sujeito e meio tanto externo, quanto interno. Portanto, como psicólogos consideramos sim os condicionantes estruturais da deficiência, porém, a mesma não pode ser considerada um empecilho mas sim uma condição estrutural para o desenvolvimento.

Para quem não sabe o TDAH é um transtorno que acomete a qualidade da atenção e da atividade do comportamento. A hiperatividade é considerada uma inquietação motora excessiva e agressiva que se repete em lugares e momentos inadequados e que o indivíduo não tem o mínimo de controle. O ponto central é o sintoma de desatenção que faz com que a criança não foque em uma atividade por um tempo necessário a sua aprendizagem ou concretização.

Em primeiro plano, o TDAH serve mais ao pedagogo e empresário da educação do que ao sujeito. Pois traçando um desvio de comportamento a escola acaba por justificar e legitimar seu método de ensino e currículo escolar. Verdades intocáveis! Até pouco tempo atrás a figura do psicólogo era vista como desnecessária ao corpo escolar, simplesmente porque o psiquismo não teria a ver com educação, somente para legitimar os métodos, aí era interessante um Piaget, um Vigótsky dentre outros. A ilusão de um controle das variáveis psicológicas no sentido de adequar a criança a um currículo fracassado.

Hoje quando chegam pacientes com diagnóstico de TDAH já desconfio e logo observo a quem serve este rótulo. A criança, a mãe, ao pai, a escola? Quando falamos de atenção, principalmente ao que seria uma atenção adequada em determinado local, estamos utilizando um parâmetro moral para categorizar o comportamento que em sua natureza extrapola tal categoria.

Ao invés de TDAH observamos uma inquietação paranoica dos pais, professores e pedagogos com relação a uma atenção inadequada. A adequação da atenção não diz respeito a somente uma função mental, mas a toda uma gama de imagens carregadas de afeto que dizem respeito a transgressão de lugares sociais. Assim quando traço parâmetros do que seria TDAH, traço ao mesmo tempo indiretamente parâmetros de como um aluno deve ser, de como uma criança deve ser e ainda mais longe, como deve ser a infância de uma criança.

Isso se dá pois não há como separar – como fazem os anatomistas – criança, infância e aluno. Em termos psíquicos, toda essa experiência é vivenciada como um todo amalgamado no inconsciente de professor, pais e sociedade. Partindo dessa conhecida lógica psicológica, mas que é negada pelo corpo escolar, a criança é pré-definida, checada, enclausurada em benefício da perpetuação de todo um sistema escolar.

Quando pais e corpo escolar procuram um diagnóstico de desatenção e hiperatividade na verdade estão afirmando a própria resistência em se colocar na relação com o outro. Quando dizemos professor – aluno, escola – sociedade, criança – professor estamos elencando uma tipo de relação. Porém, a noção de relação se perde na medida em que a categoria, o lugar social, castra a potência dialética do encontro com o outro.

O aluno deve agir de forma X (adequado), a criança deve agir de form y (adequado). Portanto o diagnóstico psiquiátrico-educacional aprisiona e não abre a questão. Não produz vontade de conhecer – que também é um relacionar afetivo – mas apenas um processo de triagem pois o “tempo” é curto e devemos agilizar o processo para alguém lucrar ao final. A vida psíquica não se expressa e não se olha o sujeito por detrás das classificações.

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O correto seria afirmar: “Ao quê serve o diagnóstico psiquiátrico-educacional?” Serve ao status quo de um poder escolar. Um controle de como-aprender. Ao mesmo tempo em que a vida psíquica é enclausurada afastando a criança da experiência imediata (sem mediação) de aprender, se reproduz e perpetua uma noção de aprendizagem que separa cognição de afeto, criação de reprodução. O resultado disso é uma sociedade que vende muitos livros de auto ajuda, mas que possibilita muito pouco um processo de ajuda e cuidado. Uma sociedade que consome muitos livros de empreendedorismo, mas que possibilita muito pouco espaços de criação de si[1]. Uma sociedade que possibilita muita privacidade mas que ao mesmo tempo produz uma solidão que atomiza e aliena.

No contexto familiar os rótulos servem para sustentar um status quo de uma atenção que os pais não conseguem dar a si mesmos diante do outro, pois tal atenção é a inadequada. Se quer que o filho atente e foque, ou seja, quer que a criança seja um produto do próprio imaginário. Trocando em miúdos, pais que não querem pagar o preço, “terem trabalho”, pois até a concepção de trabalho é de algo que cansa, retira energias e explora.

O leitor pode estar estranhando as associações que faço entre escola, casa, trabalho dos pais etc. Porém se o mesmo fizer um teste, deixar suas ideias seguir um fluxo próprio, da mesma forma quando estamos naquele estado antes de pegar no sono, vai perceber que as construções conscientes que criamos são artificiais e muito tênues, frágeis tentativas de castrar a vida inconsciente.

Como podemos ver com Jung o drama individual produz e reflete o drama coletivo. Sendo a infância o arquétipo que sustenta a vida psíquica da criança, até que ponto a sociedade está ou possibilita um lugar para o novo, o criativo e o lúdico? Assim o psicodiagnóstico visa muito mais a desvelar onde se encontra a atenção inadequada (negada) dos atores envolvidos e qual a dinâmica sustenta um quadro psicológico de desatenção com a própria vida psíquica.

O psicólogo competente não dará certezas mas irá de algum modo inquietar, desvelar para que seja desconstruído. O TDAH se torna assim um sintoma na psicologia familiar para aquilo que não se atenta quando se foca na atenção sem foco. Talvez o sintoma da ausência de foco de uma dada atenção esteja revelando uma atenção hiper focada em controlar, checar e aprovar a vida psíquica, que em si não tem foco ou direção, sopra onde quer e tem muito mais a ver com se entregar ao acaso.

Portanto, para o paranoico é preciso focar sempre, pois o que o acaso poderá revelar se por um momento desfocarmos? Interessante, pois desfocar tem muito a ver com enxergar pouco, embaçar os contornos, misturar as fronteiras. Ou poderíamos dizer, se misturar com o outro?

Desfocado

 

[1] https://www.youtube.com/watch?v=8jMcywa-HUE

 

TDAH

Dialética do Trágico

 

Cinza

A natureza humana (…) tem seus limites (…) pode suportar até certo ponto a alegria, a mágoa, a dor, mas passando deste ponto ela sucumbe. A questão não é, pois, saber se um homem é fraco ou forte, mas se pode suportar o peso dos seus sofrimentos, quer morais, quer físicos

J. W. Goethe – Os Sofrimentos do Jovem Wherter

A existência parece trazer em si uma dimensão trágica inerente. Sinto que minha vida está em constante contradição com a representação de morte. Simplesmente pelo fato de que ao experimentar a falta e o vazio, percebo o valor que o outro deve ter diante de mim, um valor que até mesmo este outro não percebe, pois é o meu valor projetado no outro.

Ao mesmo tempo em que a morte me joga para a vida, esta última se mostra como uma impossibilidade em realizar-se na medida que este “valor-de-si-no-outro” lança-me como um estiligue de volta para a experiência da falta, da morte.

Não podemos ter no outro o valor que achamos que deveríamos, tal qual não podemos dar ao outro um valor maior do que ele mesmo dá a si. Isso é uma tragicidade em que ao mesmo tempo em que precisamos viver a vida encontrando um sentido para continuar, esta mesma vida nos lança em um movimento oposto, de perda de sentido.

O trágico não é o fato de a vida possibilitar o vazio, ou o vazio possibilitar uma vida sem “vida”. Mas que isso diz respeito a um estado de irresolução afetiva e apatia intrínseco e que não se resolve. Não se resolve pois a intensidade da experiência é capaz de nos fazer desejar eliminar a própria existência e nisso entra um paradoxo dos mais essenciais.

Como existir querendo continuar a “viver” e como viver desejando não existir?

É justamente aqui que entra o suicídio como uma possibilidade existencial. O ser humano é o único capaz de decidir por tirar a própria vida. Aqui já entramos no terreno daquilo que todos buscam atualmente, liberdade.

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Dialética do Trágico

Religião e Religiosidade: (A psicologia nos limites do sagrado).

 

 

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Yggdrasil

Atualmente observamos um cenário social onde as igrejas vem ganhando cada vez mais destaque nas mídias, internet e até mesmo no senado com a chamada “bancada evangélica”. Porém, até que ponto tais manifestações religiosas são efetivamente autênticas? O que é uma experiência religiosa autêntica?

Restrinjo-me aqui – ou não – a apontar a concepção psicológica de religião e religiosidade para que possamos compreender até que ponto tais manifestações têm mais a ver com política do que com uma experiência autêntica.

A princípio o que se convencionou chamar de religião é uma confissão religiosa institucionalizada em torno de um dogma que se exterioriza na fé de um grupo de pessoas, formando com isso uma comunidade. Assim, temos as chamadas paróquias católicas, ou então as igrejas neo pentecostais. As primeiras possuem uma coesão muito maior, haja vista, que seu dogma não é questionado criando divisões.Já as igrejas neo pentecostais por outro lado, dão uma liberdade maior ao fiel possibilitando que haja interpretações diversas do livro sagrado.

Já a religiosidade é um sentimento, uma devoção baseada em uma experiência de grande tonalidade afetiva, ou o que Jung (1978) citando Rudolf Otto nomeou de numinosidade. Um efeito dinâmico não causado por ato arbitrário. Jung vai mais longe ao compreender, através de seus estudos comparados das religiões, que a religião é na verdade a manifestação deste numinoso em sua dimensão originária. Ele utiliza o radical “religio” para descrever uma consideração e observação acuradas de certas potências nomeadas como espíritos, demônios, entidades etc.

Deste modo, a religião está enraizada em seu princípio a certas experiências pessoais com as imagens que apareciam espontaneamente as pessoas como, por exemplo, as visões dos oráculos em Delfos na Grécia, ou dos santos católicos como Hildegarda Von Bingen ou São João da Cruz . Estes – assim como os Xamãs – detinham a função social de orientar as pessoas no sentido de possibilitar às mesmas, a condução moral de suas atitudes dentro de um significado comunitário maior.

A partir do estudo das religiões comparadas podemos observar certas imagens arquetípicas[1] que se repetem nos mitos e nas histórias orais como a árvore por exemplo. Na mitologia judaica e cristã a árvore ficava no centro do paraíso com uma serpente enrolada. Na mitologia nórdica temos Yggdrasil o eixo do mundo, a árvore cósmica em midgard (outra versão do paraíso). A terra dos deuses era circundada por um rio em que corria uma serpente. Na Índia temos a serpente Kundalini enrolada no Lingam que simboliza a energia fundamental, a potência divina. Em todos esses mitos o início é marcado pelo símbolo do círculo (serpente enrolada) e a união entre masculino e feminino (serpente e árvore). No mito judaico de Sofia, esta era a consorte feminina de Deus En-sof unida a este no Ensof-aur tendo sido separada por haver se esquecido de sua origem, sofrendo assim uma queda que gerou todo o desdobramento da árvore da vida, a Cabala.

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Adão e Eva sendo expulsos do paraíso
Cabala
Cabala: A árvore da Vida Judaica.

Tal arquétipo simboliza justamente esse re-ligare, como se todos nós carregássemos a intuição de uma natureza originária, uma personalidade intrínseca, um estado primordial o qual todos iremos retornar. Por isso que o círculo é o símbolo da eternidade, pois não tem começo e nem fim sendo essa a experiência de “já ter experimentado” a condição de eternidade no início, por isso a ligação é um re-ligare, ou ligar novamente. Assim, Kundalini ou Sofia deve subir novamente pelos Chakras ou Sefíras até atingir este estado novamente. A partir disso é possível notar que os mitos representam o desenrolar das imagens primordiais da alma, nosso solo humano de onde enraizamos, ou inconsciente coletivo. Estes mitos revelam o arquétipo da transcendência, ou seja, uma experiência que nos carrega e gera uma abertura para um sentido de eternidade e atemporalidade.

A partir disso Jung se volta para os símbolos naturais e revela que estes últimos são manifestações espontâneas do psiquismo, que criam e estruturam as religiões, mas que não dependem destas mesmas confissões para se manifestarem. Uma pessoa, por exemplo, pode ter fé hoje e amanhã deixar de crer, pode sentir-se em êxtase religioso em lugares extremamente comuns como o ônibus, a praça ou o recanto de seu quarto.

Isso se dá, pois os mitos ou essas imagens têm a função – quando a personalidade entra em contato com elas – de provocar no indivíduo um estado inusitado o qual Jung chamou de experiência imediata. Um estado o qual o individuo é carregado por uma força que o fascina e o carrega eclipsando totalmente sua vontade. Isso é perceptível nos estados de psicose, esquizofrenias ou nos cultos evangélicos e giras de umbanda e demais religiões.

Porém, isso ainda não significa um processo de re-ligação, pois ainda não foi psicologicamente refletido. É apenas um estado de possessão que pode ocorrer de diversas formas dependendo do tipo de experiência a qual nos abrimos. Uma energia sexual (Pomba Gira), uma energia de coragem (Caboclo), uma energia de sentido e paz (Jesus Cristo), uma energia de cuidado universal (Maria ou Mamãe Oxum), dentre outras. Karen Armstrong (2011) vai chamar esse processo de Êxtasys que é uma das etapas do contato com as imagens carregadas de númen.

O êxtase religioso não tem sentido algum se não for experimentado em um continente de proteção oferecido sempre por um símbolo. No caso do cristianismo o símbolo da cruz, na umbanda o símbolo do círculo na gira etc. Um símbolo é a melhor expressão para algo desconhecido. Assim a interpretação de uma cruz como amor divino é semiótica. Porém ela passa a ser simbólica quando põe a cruz além de todas as explicações possíveis considerando-a incompreensível por ter vários significados para várias pessoas, portando da ordem do subjetivo (SHARP, 1991).

Jung (2013, p. 483), vai inovar dizendo que a partir do momento em que o indivíduo se volta para o inconsciente, encontra-se com o desconhecido gerando a possibilidade de tais conteúdos significarem algo além do que se apresentam. Desta feita para ele “Toda expressão psicológica é um símbolo se pressupormos que declara ou significa algo mais e algo diferente dela própria, e que escapa ao nosso conhecimento atual”. Sempre um “como se”.

Para conseguir entrar neste processo, vários autores como Jung, Karen Armstrong, Mircea Elliade dentre outros, irão atentar para que a pessoa tenha religio e pistis. Pistis é uma palavra grega que pode ser traduzida por crença ou harmonia, a segunda opção é mais coerente, pois o importante não é crer na imagem (este crer muitas vezes é confundido com um sentimentalismo cego), mas ter lealdade para com as mesmas em confluência com nossas experiências subjetivas, estar harmonizado, em um compromisso com a própria alma. Assim, estar em um processo de atenção cuidadosa (religio) com o inconsciente (sonhos, devaneios, desejos, etc), mas também ser leal (Pistis) com relação às experiências provocadas pelas mesmas em nossa personalidade é fundamental para a vivência de um processo religioso autêntico.

Para que tais imagens sejam integradas a personalidade é preciso um processo de votar-se-a-si, onde tais conceitos da história pessoal de cada um (sexualidade, cuidado, afeto, sentido etc) serão expressos em um continente de proteção e aceitação incondicional, onde absolutamente tudo será aceito com uma atenção cuidadosa (religio), inclusive os julgamentos sociais. Este trabalho, dentro da psicologia é análogo ao processo de meditação onde toda imagem deve ser aceita sem julgamento em um estado de atenção plena (Budismo). Na psicoterapia chamamos de Circum ambular.

Até aqui o leitor deve estar se perguntando até que ponto falo de psicologia ou religião. De fato foi proposital, pois Jung vai inovar na área psicológica na mesma medida em que Kant inova dentro da filosofia quando distingue as noções de categorias de entendimento do mundo (lógica causal) e categorias de experiência moral. Ele (Kant) vai dizer que a moral não está sujeita as noções de causa e efeito (mundo, sociedade) sendo uma atribuição subjetiva, uma categoria eminentemente humana de justificação da liberdade. Assim ele interioriza noções como alma, subjetividade, moral e religiosidade.

Jung entende que é a partir da ideia de alma que os símbolos podem ser reavivados em um novo processo religioso, pois a noção de símbolo foi historicamente interiorizada, passou a ser entendido como uma manifestação espontânea do psiquismo e por isso sujeito a subjetividade e relação com o próprio inconsciente. Logo, um processo religioso independe de religião e tem mais a ver com uma experiência de si. Isso se torna mais notório quando observamos que a psicologia ganhou o estatuto de senhora do autoconhecimento a partir da metáfora da profundidade (Psicologias Profundas).

Em vários textos Jung vai dizer que existem pessoas que encontraram seu estatuto de verdade dentro dos dogmas de uma confissão, porém existem aquelas pessoas as quais não encontraram isso no mundo. Para estas últimas Jung diz que a experiência religiosa é com a própria interioridade, elas precisam criar seu próprio caminho entre as pedras. Daí a necessidade da psicologia. Porém, ao mesmo tempo, o psiquismo é o alfa e ômega de todo e qualquer processo religioso, pois é a partir da alma que o indivíduo experimenta o mundo.

Assim, para a psicologia não importam as questões metafísicas da natureza verossímil de Deus ou dos dogmas que as pessoas dizem acreditar, quando o que está em jogo é o autoconhecimento. Para o psicólogo o que importa é saber até que ponto a confissão (dogma) ajuda a pessoa a exteriorizar sua religiosidade, ou esta última contribui para a vivência autêntica de sua religião. Ou até mais importante de tudo! Até que ponto podemos conseguir possibilitar que a pessoa tenha a experiência religiosa consigo mesma, ajudando a desvelar o seu Self (Si-mesmo) e conseguindo suportar seu sofrimento dando um sentido a própria existência.

“Para compreender as coisas religiosas acho que não há, no presente, outro caminho a não ser o da psicologia; daí meu empenho de dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em concepções da experiência imediata”.

Carl Jung – Psicologia e Religião

 

REFERÊNCIAS

ARMSTRONG, Karen. Em Defesa de Deus. São Paulo. Companhia das Letras. 2011.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião. Petrópolis. Vozes. 1978.

_______________. Tipos Psicológicos. Petrópolis. Vozes. 2013.

SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Alfred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro. Imago. 1988.

[1] “A teoria dos arquétipos, de Jung, desenvolveu-se em três estágios. Em 1912 ele escreveu sobre imagens primordiais que reconhecia na vida inconsciente de seus pacientes, como também em sua própria auto-análise. Essas imagens eram semelhantes a motivos repetidos em toda parte e por toda a história, porém seus aspectos principais eram sua numinosidade, inconsciência e autonomia” (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).

Religião e Religiosidade: (A psicologia nos limites do sagrado).